Luiza de Farias nasceu em Recife e desde criança habita o interstício entre a capital pernambucana e sua vizinha, Olinda. É formada em Design pelo Instituto Federal de Pernambuco. Fez Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Pernambuco. É pós-graduada em Design e Arquitetura de Espaços Efêmeros. Atualmente, é mestranda em Arquitetura na Universidade Federal do Rio de Janeiro, abrigada no Laboratório de pesquisa em Arquitetura, Subjetividade e Cultura. Cria e escreve, por ofício e porque precisa.
Histórias sobre fins de mundos são contadas há algum tempo. Seja por um meteoro, por uma colonização interplanetária genocida ou por algum desastre ambiental que acabará com a vida na terra como a conhecemos. E é curioso pensar que em uma de suas versões mais famosas — o último livro canônico do compêndio bíblico, mais conhecido como Apocalipse — o fim do mundo guarda, dentro de sua etimologia (do grego apokalúpsis), aquilo que pode ser traduzido como desvelamento, uma revelação.
O livro bíblico foi escrito através de uma visão, um êxtase que, para os que acreditam, se trata de uma espécie de incorporação do Espírito Santo. Neste estágio de arrebatamento, João de Patmos — que pode ou não ser o apóstolo do evangelho — descreve as cenas inacreditáveis que via: um fim do mundo ricamente ilustrado e assustador que lhe era apresentado por um deus que se manifestava em todos os elementos da terra — “olhos como chama de fogo” e “sua voz como a voz de muitas águas”. Trombetas tocadas por anjos anunciam toda sorte de desgraças: gafanhotos e escorpiões, o mar queimando e também se transformando em sangue, um dragão de muitas cabeças, quatro cavaleiros espalhando fome, guerra, peste e também a própria morte. As cenas de João têm mais sangue do que qualquer filme que o Tarantino ousou imaginar. Ao tempo em que é estarrecedor, a revelação é antes de tudo um instigante vislumbre de um mundo que está para nascer em um campo de batalhas fantástico que precisa ser atravessado antes do começo de uma outra vida.
Minha escolha em iniciar este texto falando sobre o apocalipse bíblico não é incidental. Na narrativa construída por Octavia E. Butler, a sobrevivência precisa queimar para nos revelar outras possibilidades de mundo. Criada em um ambiente batista, ela mesma nos conduz por um fim de mundo a partir do diário de uma jovem profeta estadunidense. Assim como João de Patmos foi instruído a escrever e descrever o que via, Lauren Olamina nos escreve seu próprio livro canônico, o Semente da Terra — os “livros dos vivos” e daqueles que desejam viver e transcender a realidade de mesquinha escassez nostálgica.
… desde o primeiro momento em que descreve a vida no bairro, Lauren já se coloca contrária a forma como ela é levada por lá.
No entanto, apesar de o tom profético e catequístico ressoar ao longo de quase toda A Parábola do Semeador, principalmente através das citações retiradas dos “Livros dos Vivos”, as instruções e visões que Lauren nos passa não são apenas de um amedrontador e inescapável fim, que vem nos julgar por nossas ações desvirtuadas do dogma. São antes o contrário: escritos de encorajamento que buscam outras formas de viver além do mero sobreviver. Lauren Olamina prega que não nos acostumemos ao pouco que nos foi dado, que aumentemos a aposta nos sonhos para além de uma visita ao passado nostálgico. “Prodígio é, em sua essência, uma capacidade de adaptação e obsessão positiva e persistente. Sem persistência, o que sobra é um entusiasmo do momento. Sem capacidade de adaptação, o que sobra pode ser canalizado para um fanatismo destrutivo. Sem obsessão positiva, não existe absolutamente nada” (p. 11).
O livro é dividido em quatro partes, cada uma relativa a um ano do diário que Lauren nos escreve, começando no futuro não tão longe assim, já já, em 2024. Aterrissamos no mundo em que Olamina habita. O cenário é de cisma sociopolítico, no qual as pessoas não vivem mais em grandes urbes, nem numa abertura globalizada. Depois da crise, as formas de morar desintegram-se em lugares descontinuados, opacos, de difícil conexão e comunicação com seus arredores. A circulação de pessoas e informações não é fácil nem imediata. Toda forma de interação com o mundo exterior à comunidade murada em que a sua e algumas famílias moram é cautelosamente planejada, já que o entorno de seu bairro-feudo vive sob um alerta de perigo constante de invasão, de expropriação e de morte. Os residentes do bairro organizam-se em vigílias para supervisionar as margens das ameaças de invasão — sobretudo dos ladrões de cara pintada que consomem uma espécie de droga alucinógena que os torna piromaníacos.
Ao longo de 2024, 2025 e 2026, Lauren escreve no diário dela a vida que tem dentro do bairro murado, falando sobre a família, o pai, a madrasta e os irmãos mais novos. Também expõe as relações afetivas dela, dos vizinhos que não gosta, dos amigos, do seu “namoradinho”, de suas atividades cotidianas e da sobrevivência, do vigiar, do estudar, do trabalhar. No entanto, desde o primeiro momento em que descreve a vida no bairro, Lauren já se coloca contrária a forma como ela é levada por lá. As convicções dela e as do pai são muito distintas, já que o professor-pastor Olamina carrega uma espécie de nostalgia constante, um desejo que tudo retorne ao estado que ele conheceu há anos. Diferentemente do pai, ela acredita em uma construção de outra vida, alguma possibilidade que permita mais do que a sobrevivente espera, além do retorno ao passado glorioso ou do futuro catastrófico que irá levar à aniquilação do bairro e das famílias residentes. Lauren se organiza para que dentro de alguns anos, quando ela completar a maioridade, possa deixar a vida no bairro murado e tentar construir algo novo. Para isto, ela se planeja, lê bastante sobre coisas práticas e técnicas na biblioteca do seu pai e madrasta, aprende engenharia, agronomia e outras atividades essenciais para uma vida autônoma. Ela também insiste, assim como o pai, para que alguns dos seus irmãos e vizinhos aprendam a atirar, numa tentativa de autodefesa. Para praticar esta atividade particular eles precisam ultrapassar os muros e utilizar o meio de transporte a que têm acesso: a bicicleta. Estas incursões, além de possibilitar Lauren o manejo de uma arma, permitem-na vislumbrar um pouco do exterior de seu bairro, e nos apresenta a desconfiança dela, dos vizinhos e dos familiares com o desconhecido, sempre à espreita de uma violência iminente.
Lauren também possui uma condição que aparece na narrativa a princípio como uma enfermidade, uma doença que seu pai, madrasta e vizinhos percebem como fraqueza. Mas, com a maior liberdade da personagem, entendemos que ela compreende sua situação e utiliza esse empecilho como potência. Lauren “sofre de um mal” peculiar, uma super-empatia que a faz sentir como os outros. Principalmente em momentos de intensidade, os afetos penetram a carne de Lauren Olamina e assim ela compartilha as dores e felicidades de quem a rodeia, como se a partir de sua visão, o corpo se transformasse em um inteiro com o outro, relacionado e sinestésico. Ela incorpora o que Deleuze e Guattari entendem como afeto: “atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra. Velocidade de desterritorialização do afeto”.
Após uma série de encontros com a morte e com a dor da perda, a invasão definitiva do bairro-feudo em que viviam se efetiva. Apesar de todo seu planejamento ao longo de vários anos, a fuga de Lauren precisa ser abreviada e ela se vê sozinha, assistindo à destruição de sua antiga comunidade e impossibilitada de despedir-se da família ou de se reunir com o namorado. A partir de 2027, Lauren passa a viver enquanto caminhante das terras não-cercadas, na potência e no perigo que elas carregam. Ela começa a agregar em torno de si outras pessoas, sobretudo mulheres, crianças e os definidos como fracos, aqueles esquecidos pelo caminho, constantemente expostos à árida violência das terras inapropriáveis.
Lauren alia-se a pessoas diferentes, imigrantes medrosos, corajosos e desejosos de uma vida diferente daquela pautada sempre na constante vigilância ou violência. “Aceite a diversidade / Una… / Ou seja dividido, / roubado, / dominado, / morto / Por aqueles que o veem como presa. / Aceite a diversidade / Ou seja destruído — Semente da Terra: os livros dos vivos” (p. 242). Para este pequeno grupo que vai crescendo, Lauren prega sua ideia do Semente da Terra — os livros dos vivos, seu Deus renascido, sua fé —, e aos poucos constrói uma nova comunidade confiante e disposta a ir para o Norte com ela.
A busca por uma vida melhor, esta chama inextinguível de Lauren, é o motor dela em direção ao desconhecido. É no livro sagrado Semente da Terra que Lauren Olamina traça sua interpretação de Deus. Apesar de sua criação batista e da minha analogia com o Apocalipse de João, a história de Lauren observa o fim do mundo por novos olhos. A iminência do fim faz com que ela se movimente em direção a uma nova exegese do divino, partindo de um outro ponto de vista, semeado pela constante mudança, a morte e o renascimento.
Talvez só alguém que não se encaixe, que não encontre seu lugar nem nas searas desérticas da comuna de Lauren ou aqui, neste modo de vida colonial, predatório e totalizante, consiga enxergar a bondade na proposta de Octavia E. Butler. Porque a autora, através de Lauren Olamina, nos ensina que se abrir para as possibilidades de vidas novas e desconhecidas significa, antes de tudo, abandonar os mundos precários conhecidos. Neste caso, deixar os bairros encastelados e sua promessa impagável de um passado nostálgico queimarem — “’Para ressurgir / Das próprias cinzas / Uma fênix / Deve / Primeiro / Queimar’ — Semente da Terra: os livros dos vivos” (p. 18).
Se no caso do apocalipse bíblico o que vem depois do fim é o juízo final e as destinações definitivas das almas eternas, n’A Parábola do Semeador, Octavia nos diz que nada é final, nada é eterno, exceto a dança constante que muda tudo. “Não há fim / Para o que um mundo vivo / Exigirá de você. Semente da Terra: os livros dos vivos” (p. 170). Por isto, nos diz Olamina, junte as sementes que conseguir coletar no caminho, aposte na construção de relações significativas mesmo na adversidade e siga, siga atenta e forte, para uma outra vida, uma sem o peso da mera sobrevivência.
É necessário falar que Octavia E. Butler é uma escritora e romancista sui generis não somente pela sua capacidade narrativa e fantástica. Ela é uma das primeiras mulheres negras reconhecidas por escrever ficção científica, um lugar especialmente dominado por homens brancos e seus imaginários, e posteriormente entendida como uma das catalisadoras do movimento afrofuturista. Ganhou mais de uma vez o prêmio Hugo, o de maior prestígio da ficção científica, além de ser a primeira mulher escritora deste gênero a receber a bolsa do programa MacArthur Fellows. Para mim, sua capacidade prodigiosa, como ela mesma diz na primeira inscrição do Semente da Terra, vêm de uma força criativa esplendorosa de uma mulher capaz de pensar em fins de mundos a partir de uma perspectiva diferente dos desastres desesperançosos habituais a uma distopia masculina, branca e colonial, que enxerga o planeta e seus sujeitos apenas enquanto um lugar de extração e espólio. A perseverança de Lauren consiste no trabalho árduo e constante de não engajar em uma lógica estática e solitária, mas em mover-se e coletivizar as movimentações em construção de algo outro, algo novo. Ao ler A Parábola do Semeador, sobretudo em tempos pandêmicos e bélicos, podemos ter ainda mais materialidade de que um fim deste mundo em que vivemos está próximo, mas não só. Ela nos mostra também que como iremos viver não precisa ser uma sentença de progressivas mortes. Este é, sem dúvida, um livro para vivos.
Assim como Os Despossuídos, da Ursula K. Le Guin, A Parábola do Semeador é o primeiro livro de uma série que talvez eu retorne por aqui. O necessário da vez nestes apocalipses diários é A Parábola do Semeador da escritora Octavia E. Butler. Publicado no Brasil pela editora Morro Branco.
Foto de Luísa Machado.